quinta-feira, 8 de agosto de 2013

III Conversão

                                                                           III

A Igreja de Deus peregrina pelo universo da Criação, desejando a todos que superabundem a paz, a misericórdia& o supremo amor de Deus Pai & Cristo Filho. O devoto de Satanás, porém, que é todo aquele que inventa fábulas detratoras de nossa fé, sorri quando cidadãos esgotados pelos suplícios praticados pelas piores criaturas (aquelas tiranizadas por suas paixões mais iracundas & luxuriosas) são dilacerados pelo flagelo da descrença, da desesperança & da precipitação no abismo da hostilidade dos mortais que se vangloriam de sua astúcia & de sua força neste mundo. Porque o devoto do anjo caído se regozija quando brutalmente açoita o espírito de um cidadão que traz em sua alma aquele desejo de ser ele mesmo uma cítara harmônica em constante salmodia: o malevolente usa seu chicote para abrir a sedosa pele da alma, para poder cuspir seu odioso veneno nas veias& artérias onde flui a caridade para com o próximo, a fé em Deus & a esperança na ressurreição da carne. O demoníaco, como em uma escavação psicanalítica, dilacera a alma do temente a Deus, até chegar às vísceras & aos órgãos da potência racional, para arrancá-los impiedosamente, abandonando depois a alma quase sem fôlego para ser finalmente devorada pelas feras que servem a Baco, ao anjo mórbido ou ao mau Demiurgo: a qualquer entidade, real ou não, idolatrada pelos intelectuais cuja quantidade de títulos ostentados aponta, ao contrário, o ignóbil estado de abominação ética, política & cognitiva no qual falecem a cada minuto. Com a graça de Deus Pai, necessitamos superar nosso temor natural da morte violenta, pois se a prudência da carne ordena que cedamos em nossa fé para que triunfem esses fisiólogos nacional-socialistas, nossa salvação exige que não sejamos imprudentes segundo o espírito, pois não são a descrença, a desesperança e a hostilidade senão vícios, que o arcanjo deve calcar a seus pés como o faz com a serpente dos ínferos.

O bom pastor é aquele que conduz a si & a suas ovelhas com prudência, verdadeira erudição haurida das Escrituras & fervor na evangelização do Reino dos Céus. Este que vos fala é apenas um escriba em conversão, cuja voz foi duramente silenciada pela súcia de gnósticos travestidos de mestres em toda parte, que argutamente jogaram suas fezes na clara água onde repousava a verdade da fé, para que eu, não podendo ler o que me fosse concedido no livro da vida que é o Crucificado, não contra-atacasse o gnosticismo & sua defesa da desventura do homem na hostilidade de um mundo sufocado por um mau Demiurgo. Ora, se à matéria é atribuída a maldade, isso se deve a certo influxo da gnose órfica em Platão. Todavia, se para Platão, filósofo apreciado por Justino & Irineu, o Demiurgo era o deus inferior à ideia suprema do Bem, ele conformou o mundo sensível & o mundo das almas contemplando as Formas inteligíveis, as articulações primeiras da realidade, de modo que sua inferioridade em relação à ideia suprema do Bem não lhe desqualifica, pois Platão mesmo o considerava um deus ótimo, por haver tirado do caos para a existência cósmica.

Ademais, uma vez liberta do corpo, segundo a escatologia platônica, a alma, se virtuosa em sua vida no Aquém, goza a eternidade na ilha dos bem aventurados, retornando para o Absoluto. Os gnósticos, ao contrário, tomam o mundo & seu Demiurgo como funestos, porque para os gnósticos só é bom o que não se manifesta em nossa existência, de modo que a alma, liberta do corpo nefasto, retorna ao Ser oculto, não manifestado, de vez que a bondade, para o gnóstico, consiste na não manifestação do ser na vida humana. De modo que os gnósticos, rebeldes contra toda a tradição eclesiológica & eclesiástica, inventaram uma doutrina antagônica não só àquela apostólica & episcopal, insurgindo-se contra qualquer cosmologia oriunda da firmeza da doutrina bíblica ou da predominância da razão (platônica) da filosofia grega. 

Contra a coerência interior a toda fé em um único Deus Pai, os gnósticos se multiplicam como gafanhotos, fragmentando-se em bizarras correntes, espalhando-se como uma virulenta praga sobre o campo a ser semeado pelo zeloso evangelizador do Reino. Como esses gafanhotos maniqueístas dilaceram o trigo, corroendo o grão da verdadeira fé& fazendo grassar a cizânia no espírito do homem? O gnóstico não crê em um único Deus Criador, mas em um Deus bom, indiferente ao mundo, & em um mau Demiurgo, princípio negativo criador da matéria, de modo que a maldade do corpo se funda nesse pessimismo depreciador do corpóreo, porque originado de um deus mau. Se porventura qualquer um encontra semelhanças entre um intelectual gnóstico & o Satã de Paradise Lost, não será mera coincidência, pois o Satã de Milton é um dualista em perpétua rebeldia contra a originária santidade da Criação, nela incluídos o corpo, a carne & o espírito, além de ser um DIABOLOS, isto é, aquele que divide, que causa intrigas, para causar a queda, dilacerando a harmonia do sinfônico concerto das potências de nossa alma que, pela graça divina, pode nos conduzir a ter parte no Reino dos Céus.

Porque Deus criou o homem com barro, com o que é fértil & humilde, & não com bosta (como gostariam os gnósticos de todo tipo), uma vez que esses gafanhotos não creem que, confiando-nos a Ele, determinados a escolher retamente pela fé, amor & esperança, possamos atravessar o infinito golfo com a ponte do poder da graça, assim entrando em comunhão com o eterno Pai, de Quem tanto necessitamos. Porque a carne participa da sabedoria & poder de Deus, o Artífice, porque o poder de Deus, que concede a vida, é feito perfeito na fraqueza (2 Cor 12.9), isto é, na carne, como diz Irineu de Lião.

Comecemos a curar as chagas causadas pela praga gnóstica com o seguinte fármaco do santo de Lião: “[...] se o Criador, livremente & de Sua iniciativa, fez & ordenou todas as coisas & se Sua vontade é a única matéria donde tirou todas elas, então Aquele que fez todas as coisas é o Deus único, o único Onipotente, o único Pai, que criou & fez todas as coisas, as visíveis & as invisíveis, as sensíveis & as inteligíveis, as celestes & as terrestres. Com o Verbo de Seu poder tudo compôs & tudo ordenou por meio da Sua Sabedoria; Ele que tudo contém & que nada o pode conter. Ele é o Artífice, o Inventor, o Fundador, o Criador, o Senhor de todas as coisas & não existe outro fora& além Dele, nem a Mãe que eles se arrogam, nem o outro deus que Marcião inventou, nem o Pleroma dos 30 Éões cuja inanidade demonstramos, nem o Abismo, nem o Protoprincípio, nem os Céus, nem a Luz virginal, nem o Éon inefável, nada de tudo o que foi sonhado por eles & por todos os hereges. Só um é o Deus Criador que está acima de todo Principado, Potência, Dominação & Virtude: Ele é o Pai, é Deus, é o Criador, o Autor, o Ordenador, que fez todas as coisas de Si mesmo, isto é, por meio de Seu Verbo & Sabedoria, o céu & a terra, o mar & tudo o que eles contêm. Ele é o justo, o bom; Ele quem modelou o homem, plantou o paraíso, construiu o mundo, quem produziu o dilúvio& salvou Noé; Ele é o Deus de Abraão, de Isaac & de Jacó, o Deus dos viventes, anunciado pela Lei, pregado pelos profetas, revelado por Cristo, transmitido pelos apóstolos, crido pela Igreja; Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo; por meio do Verbo que é Seu Filho é revelado & manifestado a todos que ouvem a revelação; & O conhecem aqueles aos quais o Filho O revelou. O Filho que está sempre com o Pai & que desde o princípio sempre revela o Pai aos Anjos & Arcanjos, às Potestades & Virtudes & a todos a quem Deus se quer revelar.” (Adv. Her. II, 30.9)

Que sopro do santíssimo Espírito arejou meus pulmões! Finalmente um pouco de ar puro, encontrado apenas em manuscritos que ensinam a fé simples da Igreja! Glória a Irineu, adversário daqueles que profanam a santidade de nossos corpos com sofismas órficos, estranhos ao espírito cristão! Por que nossas almas não podem exercer sua potência racional &, filosofando verdadeiramente, compreender a coerência de nossa confissão, interpretando o Evangelho com o Símbolo apostólico? Afinal, a Igreja Católica Apostólica Romana prega a simplicidade da fé em um único Deus, & a apostolicidade da Igreja & a confissão de nossa fé provêm de Pedro & Paulo, nunca das invenções fabulosas de sofistas dualistas & pessimistas, pois a própria teologia de Irineu de Lião está inserida nessa tradição eclesiológica & eclesiástica, pois ele a concebeu a partir da evangelização de Policarpo, que, por sua vez, recebeu-a do vidente de Patmos, o apóstolo & evangelista João.

Os gnósticos nada nos dizem de origem apostólica, pois suas elucubrações sobre o mau Demiurgo, fautor do mal na existência humana, propõem como única via de ascensão a gnose, que compreende só haver bondade na não manifestação do ser na existência do homem, de modo que a criatura humana deve querer retornar ao abismo, deve tomar o seu lugar no Nada. Daí que um gnóstico jamais conceba um reto viver, pois, segundo ele, só os esgotados no hostil conflito do mundo necessitam de regras para viver na fé, no amor & na esperança: a verdade & a salvação estão, para o gnóstico, na abertura para o Nada, & não para Deus, o Ser absoluto, & por isso o gnosticismo é um elitismo intelectual absurdo, porque só um Sêneca escreveria cartas a um sobrinho para justificar o suicídio: “Serás escravo? Enfie uma estaca pela boca”. Com efeito, poucos seriam aqueles capazes de compreender a tão excelsa altura de uma regurgitação gnóstica como o estoicismo de um Marco Aurélio (grande verdugo de cristãos), mas muitos enchem o coração com a fé em Cristo, pois comungam a mesma fé pregada por toda parte, como a uma só voz, pelos sucessores dos apóstolos, pois compreendem que podem alcançar a salvação pela comunhão na verdade transmitida pela tradição apostólica, testemunha de Jesus Cristo & de Deus. 

Quando adentramos em uma Igreja capadócia, por exemplo, com portentosos arcanjos guardando a entrada, querubins& serafins sobrevoando a abóbada onde esplende o fulgor da Santíssima Trindade, com as figuras alegóricas dos evangelistas, com as cenas da Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, com os quadros dos milagres de nosso Salvador, com o coro de monges entoando cânticos acompanhados harmoniosamente por um tonante órgão, em todo esse mosaico multicolorido encontramos uma mesma modulação de crer na Verdade do Reino dos Céus, como se a Igreja possuísse uma única alma& um único coração, como se ela proclamasse, ensinasse & transmitisse, a mesma verdade da tradição apostólica, em todas as línguas, por toda parte& por todo o tempo humano.

Se aqui este escriba em conversão desliza na tessitura do argumento, é porque me parece que o Espírito Santo garante em todos os templos edificados a partir da tradição eclesiológica uma mesma fecundidade em seus carismas, pois neles vigora a firme coluna da fiel transmissão do conteúdo da fé recebida dos apóstolos & do Filho de Deus. Porque onde está o Espírito de Deus, ali está a Igreja & toda graça, porque ali está o mesmo Sopro divino, a mesma dignidade da criatura humana, que é corpo & alma, a mesma fundamentação da dignidade na beleza da Criação. Afinal, “a imagem de Deus é o Filho, em cuja imagem o homem foi criado, & é por isto que o Filho apareceu visivelmente nas últimas idades do mundo, para revelar que a imagem se Lhe assemelhava.” (Demonstratio, 22)                                                              
                                                                         

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